Tiago, este injustamente esquecido
Primeira conferência teológica apresentada no Seminário Teológico da Igreja do Nazareno, em Campinas
Voltado para a necessidade de afirmar a doutrina da justificação pela fé, Lutero foi particularmente duro com a epístola de Tiago. Chamou-a de “epístola de palha” (eyn rechte stroerne Epistel), por causa de seu entendimento equivocado de 2.14-26, onde presumiu haver o ensino de justificação pelas obras [1]. Aliás, este entendimento errôneo de Lutero ainda permanece em muitas mentes. Mas deve ser entendido dentro do contexto em que as palavras foram proferidas. Elas constam de seu prefácio à Bíblia Alemã, onde ele se expressa sobre os livros que mais mostram a pessoa de Cristo. Após nomeá-los, disse Lutero: “Por isso, a epístola de São Tiago é uma epístola bem insípida (eyn rechte stroerne Epistel) se comparada às demais…” [2]No entanto, este reformador, mais tarde, modificou sua posição. Assim se expressou Lutero, conforme nos diz George: “Quando S. Tiago e Paulo dizem que um homem é justificado pelas obras, eles estão combatendo a noção errônea daqueles que pensam que a fé sem obras é suficiente”[3]. Ou seja, Lutero veio a entender o significado de Tiago. Sua crítica precipitada aconteceu porque no Debate de Leipzig, em 1519, seu oponente, John Eck, citou Tiago 2.17 para rebater a posição de Lutero contra a justificação pela fé. Mais tarde, o reformador maturou suas idéias e modificou sua posição.
Outro que comete injustiça com Tiago é Champlin. Em uma de suas obras, diz ele: “A epístola de Tiago certamente é um documento que representa o cristianismo judaico; e não erramos por dizer, representa o cristianismo legalista” [4]. Ele despende um bom espaço para “provar” que Tiago e Paulo estão em oposição e que o primeiro escreveu para refutar, conscientemente, o capítulo 4 de Romanos. Será que pregar Tiago é pregar contra nossa herança teológica, vinda da Reforma, da justificação pela fé? Temos dois cristianismos, no Novo Testamento, um paulino e outro judaizante? Creio que a resposta ficará clara um pouco mais à frente, mesmo que não abordemos, especificamente, esta questão.
Mas fiquemos, por ora, com o esquecimento de Tiago e até mesmo sua escassa pregação em nosso meio. É estranho que suceda assim. Aliás, cada grupo tem escolhido, hoje, que parte da Bíblia pregar. Carismáticos têm se centrado em Atos e nos evangelhos. Tradicionais, nas epístolas. Os baixo-pentecostais, na sua pregação da teologia da prosperidade levada às últimas consequências, têm se valido do Antigo Testamento. Mas sua hermenêutica é estranha, partindo do princípio de que a Bíblia é apenas indicativa, e não normativa. Ou seja, é um livro que traz registro de sinais e milagres, mais que revelação plena para as demais áreas da vida. Mas de Tiago ninguém tem se lembrado, o que é problemático. Isto significa que a ética anda com baixa cotação em nosso meio.
Redescobrir Tiago é de suma importância para os cristãos do séculos XXI e tentaremos mostrar isto neste trabalho. Fala-se muito de ética (geralmente para se cobrar dos outros) e isto traz Tiago ao cenário.
UMA VISÃO GERAL DA CARTA DE TIAGO
A epístola é mais um sermão que uma carta, propriamente dita. Excetuando-se a saudação de 1.1, não há nenhum outro trecho que nos permita ver uma carta formal, como nos tempos antigos. É um sermão ou um ensino ou um tratado. Sobre sua estilo literário, fiquemos com uma citação de Metzger:
O tratado é epigramático em seu estilo, exortatório em seu conteúdo, havendo cerca de 60 verbos imperativos, num total de 108 versículos. O autor foi um homem prático, e seu trabalho é sobre a conduta cristã, com pouco ou nenhum ensino doutrinário. Seus parágrafos são curtos e não estão ligados por um desenvolvimento lógico de argumento, mas por ´˜ganchos´, um recursos comum da mnemônica judaica para preservação de material, na tradição oral. [5]
A data da obra merece consideração. Segundo Baxter, “as indicações são de que foi o primeiro de todos os documentos escritos do Novo Testamento” [6]. Crabtree aceita esta idéia e faz a seguinte observação:
O tratado condena os pecados característicos dos primitivos cristãos judeus. Nos seus preceitos e ensinos é muito semelhante ao Sermão da Montanha. Não é polêmica, e sua discussão de fé e obras, no capítulo 2, mostra que o autor nada sabia dos problemas de Romanos 4 e Gálatas 3. Surgiram esses problemas depois da conferência de Jerusalém, realizada em 49. É plausível o argumento de Tiago haver escrito a sua homília aos judeus da dispersão antes de presidir a reunião de Jerusalém, quando surgiu pela primeira vez, a controvérsia sobre a doutrina da justificação pela fé. [7]
Mas a data anterior de Tiago nos coloca diante do seguinte ponto: estamos diante do que pode ser a mais antiga produção literária em circulação, da primitiva igreja. Alguns problemas doutrinários que surgiram depois ainda não se fazem presentes. Seu autor não é um teólogo, mas um pastor. Não faz teologia, mas apresenta ética. Tentar vê-lo como oponente de Paulo é forçar uma situação que, provavelmente, nunca existiu. Se este Tiago é o líder de Jerusalém (e assim penso), tido como uma das colunas da igreja, lembremos que ele estendeu a mão direita, em comunhão, a Paulo e Barnabé, liberando Paulo para ir aos gentios (Gl 2.9). Ver contestação aos escritos paulinos é um problema de datação. Se colocarmos Tiago em 46 até 49 (data da conferência de Jerusalém), lembremos que ainda não havia escrito algum de Paulo, aceitando a datação de Stott, que coloca Gálatas como seu primeiro documento, no ano 50. Muitos dos problemas mostrados nas cartas paulinas, inclusive seu debate com os judaizantes, ainda não se haviam aparecido. Não havia porquê tratar de algo que não acontecera. Com isto, a afirmação de Champlin perde o sentido. Tiago não escreveu para refutar Paulo, porque escreveu antes dele. A linguagem de Tiago, por isto, é desligada deste contexto de debate sobre uma soteriologia correta.
Para esclarecer o aparente conflito entre Paulo e Tiago, lembremos da diferença de propósitos dos escritores. Afinal, a linguagem usada por um pastor, ao pregar um sermão doutrinário ao seu rebanho, é diferente da linguagem do mesmo pastor, ao pregar uma menagem evangelística. A mensagem do pastor no culto de oração difere da mensagem pregada pelo mesmo pastor, no domingo à noite.
A linguagem ética do autor se evidencia pelo fato de que este é o livro do Novo Testamento que tem o maior índice de paralelos com o Sermão do Monte. O autor tem grande familiaridade com a leitura de sabedoria do Antigo Testamento, inclusive a apócrifa. Tiago 1.19, por exemplo, é uma citação de Sirácida 5.11. Sua declaração de 4.14 é citação do deutero-canônico Sabedoria de Salomão 2.4. Por esta razão, inclusive, o livro é chamado de “Provérbios do Novo Testamento”. O estilo é o da hokhmâ do Antigo Testamento, fundamentalmente ética. Tiago é um hakhâm e não um teólogo. Desta maneira, podemos compreender que procurar uma teologia da salvação em Tiago é o mesmo que procurá-la no Sermão do Monte ou em Provérbios.
O VALOR DE TIAGO COMO FONTE DE PREGAÇÃO EM NOSSO TEMPO
Creio que o maior problema da Igreja em nosso tempo é de ordem cristológica. Os tempos presentes nos apresentam uma questão curiosa: um Cristo fraco e demônios fortes. A pessoa é de Cristo, mas fica endemoninhada. É de Cristo, tem o Espírito Santo, mas está cheia de maldições: do nome, das palavras proferidas por outros, etc. O evangelho é mostrado como insuficiente e o poder de Cristo é incapaz de encher a vida da pessoa. Ela precisa de gurus para quebrar suas maldições, como na Igreja Católica se necessita de um sacerdote. Na realidade, é a doutrina do sacerdócio universal de todos os salvos, que está sendo negada. O sacerdotalismo católico-medieval está ressuscitando no baixo-carismatismo. Tudo isto deriva de uma visão incompleta da obra de Cristo.
Cristo está perdendo o impacto sobre a Igreja, que está mais fascinada por demônios que por ele. Não exagero. Quantos sermões vocês ouvem na televisão sobre a pessoa de Jesus, e quantos sobre a obra de demônios? Numa livraria evangélica, certa vez, procurei um livro sobre Cristologia e não achei um sequer. Mas contei 42 sobre demônios, guerra espiritual, maldições, etc.
Parte disto é obra do misticismo contemporâneo. Só que o misticismo está centrado em demônios porque estão dão mais ibope do que Cristo. Como efeito secundário do movimento nova era, estamos vendo entidades espirituais em tudo. Uma jovem me perguntou se podia comer acarajé, na Bahia. Perguntei-lhe qual era a questão. Ela ouvira dizer que as mães de santos colocam um demônio em cada acarajé. Outra me indagou sobre a homeopatia porque soubera que na manipulação nas farmácias se colocam demônios nos remédios. Este misticismo exacerbado se aliou com o estrelato do demônio que começou com filme O exorcista e pegou uma Igreja sem doutrina, sem fundamentos bíblicos, mais preocupada com sentimentos e sensações do que com conteúdo. Uma Igreja que se vale mais do marketing do que da teologia. E faz um estrago. Temos muita espiritualidade e pouca ética. Como pode ser isto?
Tiago nos ajuda a colocar os pés no chão. Nós vivemos neste mundo. Somos a Igreja Militante, apesar do triunfalismo que mostra a Igreja Triunfante já aqui na terra. Se a Igreja Militante quiser ser Igreja triunfante, aqui na terra, corre o risco de desaparecer. Ouçamos Kierkegaard:
Aqui no mundo não é o lugar da tua Igreja triunfante, mas somente da Igreja militante. Mas, se esta combater, ninguém a poderá jamais expulsar do mundo, porque tu te fazes dela fiador. Se, ao contrário, ela cisma dever triunfar neste mundo: ai de mim, ela então é culpada se lhe subtrais a tua assistência, se ela desaparece, pois que se confundiu com o mundo. Estejas tu com tua Igreja militante, de modo que jamais a contecer a acontecer (e esta é a única maneira possível) que ela seja cancelada da face da terra por ter-se tornado Igreja triunfante [8].
A Igreja corre risco. Quer deixar de ser Militante para ser Triunfante. Está trocando o testemunho pelas finanças, pelo poderio material. Está mais focada na matéria e na grandeza aos olhos humanos do que na vida autêntica, não artificial, segundo os olhos de seu líderes, mais empresários que homens de Deus. Prevalece hoje a mega-igreja e não a comunhão dos santos em busca da Canaã celestial. Isto é um perigo. Tiago precisa ser redescoberto como material de pregação para as igrejas. É esta a proposta da primeira palestra. Mostrar que Tiago está sendo esquecido injustamente e deve ser redescoberto como possuidor de conceitos altamente necessários para a Igreja.
O MATERIAL DE TIAGO PARA O PÚLPITO CONTEMPORÂNEO
Em quê Tiago pode falar à Igreja de hoje. Se ocupasse nossos púlpitos, que diria ele aos membros de nossas igrejas? Fosse falar num encontro de pastores, que diria ele? Em nossos púlpitos, que nos diria ele?
Verberaria contra a espiritualidade descarnada, enfatizando a necessidade de fé evidenciada por obras (Tg 2.14-26). Este é um dos grande males da Igreja contemporânea. Vida cristã passou a ser algo que acontece num determinado dia, num determinado lugar, sob o comando de determinadas pessoas. Vida cristã é o que fazemos num momento chamado de “culto”. Achamos que participar de um culto e cantar corinhos ingênuos, fazendo um ar beatífico é o maior sinal de sermos cristãos. A fé se mostra nas obras. “Pelos frutos os conhecereis”, disse Jesus (Mt 7.20). Não foi “pelo seu louvor os conhecereis”, mas “pelos seus frutos”. Uma Igreja sem obras, com uma fé intimizada, sem objetividade no mundo, é uma incoerência.
Diria também que não podemos fazer acepção de pessoas, como disse em 2.1-9. Há comunidades cristãs que fazem claramente distinção social. Algumas chegam a ser guetos de uma classe média que se julga importante e que amoldou o evangelho às suas expectativas sociais. Um dos nossos grandes problemas hoje é “diferencialidade”. Como apregoamos nossa diferença! Há igrejas que, mesmo recebendo uma pessoa de outra igreja da mesma fé e ordem, exige dela que vá para uma classe especial, porque aquela igreja é diferente. Uma espécie de classe de reeducação. Em outras palavras: “somos melhores que sua igreja e você precisa aprender nossa cultura particular”. Vaidade, orgulho, mundanismo. Igrejas e denominações que se julgam acionistas majoritárias do céu e das promessas de Deus.
Tiago falaria da “língua solta”, doença comum em nosso meio e que ele mencionou em 3.1-12 e 4.11. Como se fala mal da vida alheia nas comunidades cristãs! Como se ataca a reputação dos outros! Muito dos bastidores eclesiásticos e denominacionais em nada difere dos bastidores do mundo. Particularmente, em 30 anos de ministério, sofri mais com a língua dos irmãos e dos “colegas” do com a dos incrédulos. Estes sempre me respeitaram. Os crentes e colegas, já perdi a conta….
Falaria da avareza social de muitas igrejas, como fez em 5.1-6. Há igrejas buscando riquezas e fugindo do sofrimento. Querem o trono sem a cruz. É novamente a questão de Militante e não Triunfante. Mas falo, agora, da vista grossa à bandalheira social deste país. Da orgia com verbas públicas sendo usadas para projetos fantasmas, ranários fantasmas, etc. O pobre depende hospitais de baixa qualidade. Soa-me estranho ver governantes de outros estados, quando têm problemas graves de saúde, virem a S. Paulo para se tratarem. Por que não se tratam nos hospitais que dão para seu povo? Uma classe política que vive nababescamente, votando salários miseráveis para o povo. Esta mesma classe, muitas vezes, é adulada por igrejas que cortejam o poder público. Votos são trocados por tijolos ou concessões outras. Tiago lembraria uma frase em Amós 6.6: não vos afligi com a ruína de José”. Oszés da vida não são considerados.
Esta avareza social seria mostrado em salários miseráveis pagos a zeladores e funcionários de igrejas. Em direitos trabalhistas que igrejas e instituições evangélicas negam a seus funcionários. No escamoteamento que se faz para se driblar leis que trazem benefícios. Tiago falaria do perigo das riquezas. A Igreja de Laodicéia era rica, mas aos olhos de Jesus era mendiga (é este o sentido do termo grego lá empregado).
Muitas outras coisas Tiago falaria e nos seria incômodo. Nos o ouviríamos ou faríamos como Ananias, o sumo sacerdote em Jerusalém, que segundo Flávio Josefo, mandou apedrejá-lo [9]?
[1] STOTT, John. Homens Com Uma Mensagem. Campinas: Editora Cristã Unida, 1996, p. 18
[2] LUTERO, Martinho. Da Liberdade do Cristão – Prefácio à Bíblia (Edição Bilíngue). S. Paulo: Fundação da Editora Unesp, 1997, p. 81.
[3] GEORGE, Timothy, in “A Right Strawy Epistle: Reformation Perspective on James”. Louisville: Review and Expositor – A Baptist Theological Journal, vol. LXXXIII, no. 3, 1986, p. 371
[4] CHAMPLIN, R. N. . Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. S. Paulo: Editora e Distribuidora Candeia, 1991, vol. 6. P. 536.
[5] METZGER, Bruce. The New Testament, Its Background, Growth, and Content. Nashville: Abingdon Press, 1965, p. 252.
[6] BAXTER, Sidlow J. Examinai as Escrituras – Atos a Apocalipse. S. Paulo: Edições Vida Nova, 1989, p. 309. O itálico é de Baxter.
[7] CRABTREE, A . R. Introdução ao Novo Testamento. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 4ª ed., 1963, p. 316.
[8] KIERKEGAARD, Sören. Das Profundezas – Preces. S. Paulo: Paulinas, 1990, p. 83
[9] BAXTER, op. cit., p. 307.