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Como conservar a unidade entre a diversidade

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Como conservar a unidade entre a diversidade

Preparado pelo Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho, para a Associação Batista Gonçalense, abril/2008

 

 

INTRODUÇÃO

            Amigo de correspondência, pastor de outra denominação, me indaga se os batistas não estariam melhores se houvesse um controle sobre as igrejas, para evitar problemas doutrinários como G12, por exemplo. Ainda não lhe respondi pois tinha muita coisa por fazer e a resposta demanda tempo. Além disto, esta palestra tocaria no assunto e me permitiria ter mais raciocínio para responder.

            Há em nosso meio um pensamento com tendência a um controle externo sobre as igrejas. É uma reação a alguns abusos que aconteceram em nosso arraial. Infelizmente, todos conhecemos casos de gente pouco honesta que mudou lentamente as doutrinas na igreja, até levar o patrimônio consigo ou para outro grupo. É lamentável. Mas não creio que policiar as igrejas seja a solução. Mesmo porque na doutrina batista, as igrejas são a denominação e são elas que devem controlar as instituições. Chamamos nossas instituições de denominação, mas denominação são as igrejas batistas e não as convenções. Foi em 1879 que se organizou a primeira igreja batista no Brasil, e a Convenção Batista Brasileira surgiu em 1907. Não foi a convenção que criou o trabalho batista no Brasil, mas as igrejas batistas que criaram a convenção. E não a criaram para tutelá-las, mas para servi-las.

 

            Podemos dizer, no rigor do termo, que as convenções e demais órgãos são instituições pára-eclesiásticas, isto é, caminham ao lado das igrejas. O que chamamos de pára-eclesiásticas, como ABU, Missão Vida, APEC, por exemplo, são, na realidade, pára-denominacionais. Mas voltemos ao nosso caso: as igrejas são senhoras da estrutura e não o oposto. As estruturas foram criadas por causa das igrejas, para servi-las, para serem seu braço direito, e não o oposto. E como batistas reconhecemos que do ponto de vista do Novo Testamento há apenas uma instituição divinamente ordenada, a igreja. Creio que a igreja local, que também é corpo de Cristo (Paulo disse à igreja de Corinto que ela era corpo de Cristo), também tem origem divina. Creio também que se deve haver controle é das instituições pelas igrejas. Neste caso de posições doutrinárias que nos inquietam, um controle mais dos seminários por elas e não delas pela instituição. E também um controle dos concílios examinatórios e consagratórios pelas ordens de pastores que deveriam ser mais criteriosas na consagração de pastores e mais ativas no seu relacionamento com as igrejas, no tocante à orientação sobre escolha de pastor. Mas isto é outro assunto. Foi tangenciado aqui para mostrar que controlar igrejas é dar um tiro no próprio pé. As estruturas foram feitas por elas e para servir a elas. Se elas saírem da estrutura,  continuam a viver. Sem a estrutura, as igrejas existem. Mas sem igrejas a estrutura acaba. Foi-se o tempo em que as igrejas eram dependentes da estrutura. Esta depende das igrejas e se as igrejas saírem, elas acabam. Mas deixemos isto para lá. Foi só para apresentar, en pasant,  a questão da diversidade eclesiástica que incomoda certos setores que desejam que a estrutura as controle.

            Tudo isto foi introduzir o assunto: a diversidade é má? Deve haver uma homogeneização das igrejas? Elas devem ser iguais? Obviamente não responderei tudo isto. Mas darei minha opinião, levantando questões e oferecendo sugestões. Vamos em frente, portanto.

 

1. DIVERSIDADE É INEVITÁVEL

            A diversidade em nosso meio é inevitável até mesmo por causa de um princípio da Reforma, nosso berço histórico, o livre exame das Escrituras. Já havia diversidade no judaísmo (fariseus, saduceus e várias correntes menores de pensamento) e não é diferente no cristianismo. Os batistas são dissidentes da Reforma, que são dissidentes da Igreja Católica. Há diversidade de interpretação e de pontos de vista no cristianismo. É inevitável que surjam as diferenças, as rupturas e novos grupos. Não digo que é recomendável, mas que é inevitável.

            A pergunta do colega de outra denominação, que introduz esta palestra, e o tema proposto para esta palestra parecem caminhar na mesma direção: não seria possível dar uma “segurada” nas muitas inovações? Ou como um pastor batista me perguntou num congresso, onde fui preletor: “O excesso de liberdade das igrejas não estaria pulverizando a denominação?”. Não dá para a denominação controlar as igrejas?

            Em princípio, reafirmo que para mim “denominação” são as igrejas. E o que chamamos de “denominação” (convenções, associações, juntas, conselhos, demais instituições) são “estrutura denominacional”.  E afirmo que esta não é xerife daquela, mas o oposto é verdadeiro. E sem querer ser grosseiro, o motivo de muitas igrejas se afastarem das estruturas denominacionais é que algumas delas abusaram do direito de errar. E muito “executivo denominacional” (que termo pomposo!) se portou de maneira imperial com muito pastor e com muita igreja. Anos atrás fui falar com um executivo para levar uma proposta de minha igreja, em sustentar um obreiro, numa determinada região. Ele arregaçou a manga da camisa, olhou o relógio, e me disse: “Você tem cinco minutos para me dizer o que quer”. Não é de estranhar que hoje esteja no ostracismo…

            Mas, o que é pulverizar a denominação? E que denominação é esta? Temos os batistas convencionais, os batistas nacionais, os batistas livres, os batistas independentes, os batistas da fé, os batistas do sétimo dia, os batistas regulares, os batistas bíblicos, entre os mais conhecidos. Estamos falando especificamente da Convenção Batista Brasileira? Porque os batistas sempre foram fragmentados. Podemos definir detalhadamente o que é um batista? Aceito in totum a Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira. Encaixo-me nela bem. O artigo XIX, “Justos e ímpios” me dá segurança, porque sou amilenista. Mas creio que algum pré-milenista dispensacionalista gostaria de detalhar itens ali. Já não poderia ser batista bíblico ou regular, exatamente porque sou amilenista. Nossa Declaração é um guarda-chuva mais amplo, mas alguns gostariam de um guarda-chuva menor. Mas faço apenas uma pergunta: opção por uma corrente escatológica é doutrina batista específica? Sou menos ou mais batista por esta posição que adotei?

            Temos batistas que optam por dicotomia e outros que optam por tricotomia. Qual é a posição batista específica? A Declaração não detalha posição. Por isso que ela se chama “Declaração” e não “Confissão”. Ela é indicativa do geral, mas não normativa específica. Ela declara o que cremos. Temos diversidade em escatologia, em antropologia, em liturgia, e outras áreas. Mas definimos o que é doutrina específica dos batistas? Definimos qual a liturgia batista específica?

            Somos um povo com diversidade doutrinária e litúrgica. Isto é histórico. Há igrejas batistas com cultos solenes. Há igrejas batistas com cultos anárquicos e ensurdecedores. Qual é a regra?

 

2. UM POUCO DE HISTÓRIA

            Vamos nos conhecer um pouco, desde nosso berço.

Historicamente, os batistas surgem em 1609, na Holanda, tendo John Smith como seu primeiro pastor. Mais tarde ele duvidou do seu batismo. Sendo arminiano isto o aproximou dos anabatistas. Ele veio deles [1], segundo Torbet. Segundo Walker, ele era clérigo da Igreja Anglicana, tornou-se pastor de uma igreja separatista, e mais tarde originou a primeira igreja batista e depois cogitou ir para os anabatistas. Alguns membros de sua congregação chegaram a ir, mas ele morreu de tuberculose, em 1612, sem concretizar sua transferência [2].

            O grupo remanescente voltou para a Inglaterra com Thomas Helwys, organizando-se em igreja em 1612. Também eram arminianos e se tornaram no que se chama de “batistas gerais”. Nenhuma das duas igrejas praticava a imersão, mas a afusão. O grupo de Helwys, a primeira igreja batista em solo inglês e também a primeira igreja estabelecida para se firmar, recebeu esta afirmação de Walker: “Eram grandes campeões da tolerância” [3]. Os batistas surgiram com dúvidas e em espírito de tolerância.

            Este grupo também era arminiano em sua soteriologia, crendo na expiação ilimitada.

            Em 1630, um grupo de congregacionais, saídos da igreja pastoreada por Henry Jacó (ele fundou a primeira igreja congregacional, em 1616, que ainda existe) organizou-se em igreja batista, mas seguiu uma nova linha doutrinária. Não eram arminianos, mas calvinistas, porque criam na expiação limitada. Por isso eram chamados de batistas particulares. Em 1641 adotaram o batismo por imersão (até então os batistas usavam a afusão) e isso se disseminou entre os batistas ingleses [4]. Os batistas tinham espaço para a diversidade, desde o início, portanto. Havia batistas arminianos e batistas calvinistas. E o batismo como imersão só foi tornado prática universal entre os batistas cerca de quarenta anos após seu surgimento. Nós não nascemos com uma doutrina monolítica, mas fomos cristalizando certas práticas e assumindo certas posições doutrinárias, com o tempo.

 

3. DIVERSIDADE É BOA OU RUIM?

            Nem boa nem ruim. Ela acontece. Exatamente por causa da nossa ênfase no livre exame das Escrituras e de nossa ênfase no sacerdócio universal de todos os salvos, herança da Reforma. Veja-se, por exemplo, esta afirmação de Lutero: “Esteja, por isso, certo e reconheça-o qualquer um que se considere cristão, que somos todos igualmente sacerdotes, isto é, que temos o mesmo poder na palavra e em qualquer sacramento” [5]. Uma herança protestante nossa é o nivelamento de todos no acesso a Deus e no exame das Escrituras. O problema é que muitos confundem livre exame com livre interpretação. Mas mesmo que identifiquemos isto, o mal que muitos causam já foi feito. Assim, a tendência dos grupos de origem protestante é à diversidade. Isto fragmenta, mas de lado, permite adaptação e até mesmo mudança.

            A diversidade pode ser boa. Eu teria dificuldades em ser batista se fosse obrigado a ser pré-milenista dispensacionalista. Mas há grupos que o são e grupos que não o são. Eu fico num grupo que me permite não ser. Eu teria dificuldades com um grupo batista que não permitisse à mulher falar em público. Fico num grupo que permite isto. Se a liturgia batista fosse toda ela de corinhos e de decibéis ensurdecedores, eu teria dificuldades. Sou de liturgia tradicional. Quem não gosta dela não seja minha ovelha. E igreja que gosta de liturgia barulhenta não pense em meu nome para pastorado. A diversidade permite acomodações que algumas vezes são de doutrina não fundamental, e em outras, de prática litúrgica que expressam  mais a cultura que a teologia.

            A diversidade pode ser ruim se afetar a doutrina que os batistas entendem ser bíblica. Há pontos negociáveis, como indumentária, liturgia, estrutura eclesiástica (se departamentos, se ministérios, por exemplo) e a ceia do Senhor, se restrita aos batistas ou não. Até mesmo porque a Declaração diz que ela pressupõe o batismo bíblico [6]. E ao falar do batismo, diz que ele “consiste na imersão do crente em água, após sua pública profissão de fé em Jesus Cristo como Salvador único suficiente e pessoal”. Isto permite aceitar que um assembleiano participe da ceia em uma igreja batista.

            Mas conheci um pastor, da CBB, que adotava em sua igreja a ceia ultra-restrita, a ponto de realizá-la em culto dominical, às 7 da manhã, para impedir que visitantes de outras igrejas batistas da Convenção participassem.

            Não é que a Declaração seja ambígua. É que ela se centrou no geral, não descendo a particulares. Quando descemos a particulares corremos o risco de criar mais divisões. Na história dos batistas brasileiros, a adoção do cálice individual na ceia do Senhor trouxe muita contenda. Muitos crentes não aceitaram assim. Tinha que ser cálice único. Mas em que isto afetou a unidade batista?

            Há pontos inegociáveis em nossa doutrina. Arrisco-me a alistá-los: a autoridade e a inerrância das Escrituras, a suficiência da obra de Cristo, a sua encarnação pelo nascimento virginal, sua morte física literal e redentora, a salvação pela graça por meio da fé, a ressurreição literal e a ascensão de Jesus, bem como sua segunda vinda visível, em poder e glória. É inegociável o batismo de adultos após a conversão e profissão de fé. É inegociável a ceia como ato memorial e não sacramental. É inegociável a igreja como congregacional, sem bispos a ela externos, sem concílios a ela externos. Ela se administra. Somos congregacionais, neste sentido. Estas questões são inegociáveis. Sobre o resto, posso dialogar.

            É preciso cautela porque muito divisionismo se dá mais por questões menores que maiores. Cuidado para que o personalismo raivoso não seja entendido como zelo pela verdade.

 

4. E COMO PROCEDEMOS NA DIVERSIDADE?

            Para a questão que é o centro temático da palestra, gastarei menos tempo. Porque foi necessário fazer um rastreamento de quem somos, de onde viemos e como estamos. Aqui, a questão é bem simples. Vou parafrasear uma argumentação de outra pessoa, formulando-a com minhas palavras:

(1)   Naquilo que é fundamental, a unidade.

(2)   Naquilo que é secundário, a possibilidade de divergência.

(3)   Em todas as circunstâncias, a fraternidade.

Não preciso provar para ninguém meu zelo doutrinário e meu amor pela minha denominação. Não desprezo os irmãos de outros denominações, mas sou batista. Sem desprezar os batistas de outros grupos, sou da Convenção Brasileira. E como batista, sempre me lembro que meu povo surgiu apanhando de dois lados. Da Igreja Católica e dos protestantes. Em nossa história, a intolerância e o fanatismo cego, aliados ao zelo sem entendimento que Paulo atribuiu aos judeus e que se encontra entre cristãos, nos fizeram muitos estragos. Lembro que os batistas foram paladinos da liberdade religiosa. Lembro que nunca perseguiram ninguém. É a ignorância de nossa doutrina e de nossa história que faz surgirem  muitos problemas doutrinários. Mas é a ignorância de nosso passado de tolerância e de respeito aliada a um neofundamentalismo que suscita um espírito de hostilidade aos divergentes entre nós.

 

CONCLUSÃO

            É possível conservar a unidade entre a diversidade? Sim. Isto não significa ser firme ou ser sem zelo. Significa ter posição firmada e ao mesmo tempo ter respeito e amor cristão. Geralmente nos lembramos do conselho paulino, em 1Coríntios 14.40, para enquadrar os neopentecostais e os pentecostais. Mas ele serve para todos: “Mas faça-se tudo decentemente e com ordem”. Inclusive o que pensamos ser o zelo pela são doutrina e sã liturgia.

            O diferente não é o herege. A não ser que negue o fundamental. É apenas quem faz ou entende de outra maneira. Mas se nega o fundamental, já não é diversidade. É negação da fé.

            Clones, não. Diferentes, é possível. Tolerantes? No não essencial, sim. No fundamental, inamovíveis. E lembremos-nos de 1Coríntios 16.14: “Todas as vossas obras sejam feitas em amor”.

Para a glória de Deus e para o bem-estar do seu povo.


[1] FAIRCLOTH, Samuel. Esboço da história dos baptistas.  Leiria: Vida Nova, 1959, p. 36.

[2] WALKER, Willinston. História da igreja cristã. S. Paulo, ASTE, 1967, vol. II, p. 146.

[3] Ib. ibidem, p. 146.

[4] Ib. ibidem, p. 147.

[5] LUTERO, Martinho. Do cativeiro babilônico da igreja. S. Paulo: Editora Martin Claret, 2006, p. 109.

[6] Diz a Declaração, no item IX, sobre “O batismo e a ceia do Senhor”, ao falar desta última: “sua celebração pressupõe o batismo bíblico”.

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