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Uma Incursão Indevida

  • por

Isaltino Gomes Coelho Filho

Leio livros simultaneamente. Por vezes, detenho-me mais em um que em outro. Assim lia “A maldição do Cristo genérico”, de Peterson, “As novas passagens masculinas”, de Sheey, e “Paris no século XX”, de Júlio Verne. Este é um romance de Verne, escrito no século XIX, recusado por seu editor. Meacir e eu lêramos uma ficção sobre Santos Dumont, em que uma possível amizade entre ele e Júlio Verne é relatada, e cita-se esta obra rejeitada. Por isto ela comprou o livro, leu-o, e eu, na sua esteira, também o li.

O editor de Verne considerou a obra fraca, e suas cartas dizendo isto ao escritor são transcritas no livro. Não sou um literato, mas creio que fugiu um detalhe ao editor: a visão futurâmica e as descrições de máquinas que seriam inventadas, comuns em Verne, não são o forte na obra, mas sim sua análise dos personagens. Sempre genial, o francês antecipou seu tempo. Fez uma análise psicológica de pessoas numa sociedade tecnológica, mostrando principalmente a situação do adolescente Michel, um intelectual, que gosta de literatura e poesia, numa sociedade em que estas foram banidas e se privilegiava a técnica e a mecânica.

Michel vai a uma grande livraria e pede uma obra de Victor Hugo, “Notre-Dame de Paris”. O atendente não encontra a obra e lhe diz que Hugo deve ter sido um escritor sem importância e a obra, sem relevância. Michel diz que a obra vendera 500.000 exemplares. O atendente diz que não a tem, e já que Michel gosta de literatura (por isso, aos olhos de todos, era um inútil), que seu gosto pode ser suprido com obras segundo o espírito da época: “Harmonias elétricas”, “Meditações sobre o oxigênio”, “Paralelograma poético” e “Odes descarbonatadas”. O adolescente fica pasmo: “Assim, aquele pouco de arte não escapara à influência perniciosa da época! A ciência, a química e a mecânica faziam irrupção no terreno da poesia!” (p. 62). Júlio Verne antecipou uma época em que a técnica e a visão utilitária da vida se sobreporiam à literatura e às ciências humanas. A visão do mundo seria mecanicista e utilitária.

De Júlio Verne com sua Paris do século XX para Eugene Petersen, com a igreja do século XXI. Petersen fala da visão utilitária dos cristãos, enxergando as questões do ponto de vista do que é funcional, e não do ideal cristão. A teologia tem cedido à tecnologia eclesiástica. Sacrifica-se a verdade teológica em favor do que é capaz de ajuntar pessoas e produzir números. A visão da igreja também é utilitária.

Petersen diz que tradições religiosas e culturais se acham em frangalhos, e que os publicitários religiosos oportunistas nos oferecem opções para lidarmos com Deus e com a alma. A mim impressiona o abandono da ortodoxia e da verdade teológica em detrimento dos números. A preocupação não com é o ensino da Palavra de Deus, mas como agradar as pessoas. Estas não são vistas como pecadores que precisam de conversão e que por isso devem ouvir o evangelho. São vistas como clientes por fidelizar para gostarem do ambiente e assim ficarem como consumidores. Há igreja para todo gosto, mas me indago se o gosto de Deus, revelado nas Escrituras, foi consultado. Verdade passou a ser definida em termos de funcionalidade. Aí penso como Michel: a mentalidade funcional do mundo fez uma irrupção no terreno da Revelação. O entretenimento, traço cultural dominante de um mundo medíocre, invadiu as igrejas. Muitas procuram mais um apresentador de “reality show espiritual” que um homem que procure levar a o povo a viver a Bíblia. A Paris do século XX em que Michel vivia lança luzes sobre a igreja do século XXI em que vivo.

Volto a Petersen: “Não sobrevivemos como comunidade cristã por dois mil anos (quatro mil, se contarmos nossos antecessores hebreus) nos ´˜conformando com este século´ (Rm 12.2), enquadrando-nos nas tendências sociológicas de nossa época, permitindo descuidadamente que sejamos assimilados pelas práticas do mundo” (p. 253). E mais à frente, diz-nos ele: “O mundo é um lugar sedutor. Se começarmos a atender aos seus interesses, satisfazer suas curiosidades, moldar nossa linguagem às suas formas de expressão e sintaxe e adotar seus critérios de relevância, abandonamos nossos princípios norteadores” (p. 343). E é verdade. Por isso, tem nexo a resposta que um amigo me deu, quando perguntei como ia sua igreja: “No paradoxo do mundo: procurando um caminho, ao invés de apontar o caminho”.

O grande risco que a igreja corre não é a hostilidade do mundo. Ela sempre triunfou sobre os inimigos externos, passando sobre eles como um trator. Foi assim com o Império Romano, foi assim com o comunismo, será assim com o Islã. O Nome sobre todo nome há de triunfar. O grande risco é a descaracterização. Muitas mensagens estão mais para Lair Ribeiro que para Jesus Cristo, e muitos cultos estão mais para programas de Sílvio Santos do que momentos diante do Deus Santo.

Júlio Verne foi um gênio mesmo. Fico a pensar se não anteviu também a situação da igreja evangélica do século XXI. Quanto a mim, prefiro ser um Michel, tido como ingênuo e alienado, que seu tio e tutor, Monsieur Boutardin, um pragmático, para quem o que realmente valia a pena era a produtividade e a quantificação. Ingênuo e ultrapassado, sim, mas seco e oportunista, não.

Mas receio, sinceramente, que a preocupação com clientes e consumidores domine mais a mente dos líderes cristãos que a fidelidade à essência do evangelho. Deus nos livre disto! Que a incursão indevida de valores do mundo sobre a igreja não suceda mais, e que haja uma reação santa a ela. Que nossos seminários gerem mais Micheis que Boutardins, e que aqueles e não estes sejam os líderes desejados por nossas igrejas. Espero que as advertências de Petersen encontrem eco em nosso meio, e que as igrejas saibam qual é o caminho e o preguem, ao invés de se mostrarem desorientadas, procurando um caminho para se amoldar a um mundo pecador e medíocre.

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