Por
Pr. Darlyson Feitosa
(Oficina de Teologia e Cultura: textos artesanais para a igreja urbana. Brasília/DF. Texto 024 – 21/09/2012)
Como registra a imprensa mundial, o fragmento de papiro de um suposto evangelho apócrifo apresentado pela Dra. Karin King em Harvard e na Itália há poucos dias tem causado sensação. Apesar de estar bastante fragmentado, no papiro se lê com clareza Jesus disse a eles, ´˜Minha mulher (…)´. A questão maior aqui é a implicação de Jesus ter sido casado, com a secundária (e popular) possibilidade de Maria Madalena ser a mulher/esposa mencionada. Algumas observações:
(1) O fragmento é do IV século d.C., com possibilidade de se tratar de uma cópia. Nesse caso, ele remonta a um original que seria do séc. III ou II d.C. sendo, portanto, um fragmento bem antigo. Apesar da Dra. King de imediato expor várias ressalvas (por exemplo, o fragmento não prova absolutamente nada sobre o estado civil de Jesus; não é possível estabelecer o vínculo do dito com o contexto maior do escrito – isso poderia modificar o entendimento da declaração), o inaudito parece ser a tônica. Periodicamente emergem descobertas antigas que são consideradas bombásticas. Dan Brown explorou o vínculo entre Jesus e Madalena em O Código da Vinci, com uma aplicação sensacionalista do Evangelho de Felipe. Houve grande sensação com a apresentação em tempos recentes do Evangelho de Judas e do Evangelho de Tomé. A importância dessas descobertas não pode residir na eventual emersão de provas que ratificam posições contrárias ao que se conhece de Jesus a partir dos evangelhos canônicos, mas sim na revelação da pluralidade de pensamentos antigos a respeito de Jesus (sua pessoa, seu movimento).
(2) Para grande parte do cristianismo contemporâneo, nenhuma implicação desconfortável nos seria imposta caso houvesse ou fosse encontrado algum registro sobre Jesus ter sido casado e ter sido pai. Se entendermos a encarnação de Deus em Jesus como plena, nenhuma contradição haveria no fato de Jesus ter exercitado plenamente sua humanidade nos aspectos que não se configurariam em contradição à natureza de Deus (o ato do pecado, por exemplo). O desconforto de Jesus ter sido casado e ter sido pai ocorre somente na perspectiva de alguns segmentos cristãos nascidos na Idade Média, que consideraram o sexo como pecado.
(3) Visto que a datação de um documento é primordial para o seu próprio entendimento, então os evangelhos canônicos e demais documentos do Novo Testamento estão muito à frente em importância, mais antigos que são! No final do séc. I d.C., Clemente de Roma já citava a Epístola aos Hebreus, por exemplo! Muito mais bombástica seria a teoria do papirólogo alemão Carsten Peter Thiede, que data o fragmento grego de Mateus (papiro de Magdalen = p64) por volta de 60 d.C.! As críticas contra a teoria de Thiede não estão no mesmo nível de sua pesquisa e carecem de melhores argumentos. Se for para falar sobre antiguidade de fragmentos, os fragmentos de livros canônicos continuam imbatíveis.
(4) E, precisamente sobre a questão marital de Jesus, o Novo Testamento registra, sim, expressões nessa direção: (1) Paulo diz aos coríntios que ele os prepara como virgem pura para um só esposo, Cristo (2Cor 11,2); (2) o Cordeiro se prepara para o casamento (Ap 19,7.9) e a Jerusalém celestial é a sua noiva/esposa (Ap 21,2.9); (3) Mateus registra uma parábola de Jesus com a temática do casamento (Mt 22); (4) Numa das metáforas mais líricas sobre o amor de um homem por uma mulher, Paulo o compara ao amor de Cristo pela igreja (Ef 5,25s).
O interesse da Dra. King por Jesus parece ser dependente do seu interesse maior, Maria Madalena (cf. seu site em http://www.hds.harvard.edu/people/faculty/karen-l-king). Trata-se de uma tendência moderna, a de se sustentar outros olhares para a religião, como o faz com propriedade a chamada teologia feminista. Essa tendência ´˜moderna´, a bem da verdade, já era vista nos primórdios do cristianismo, com vários grupos distintos enfatizando suas preferências e destaques doutrinários – daí se usar atualmente o vocábulo cristianismos para se referir àquela pluralidade.
¨ Veja o fragmento de Harvard em http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/1155604-papiro-do-seculo-4-menciona-mulher-de-jesus.shtml
¨ Para as pesquisas de Thiede: http://www.youtube.com/watch?v=sqUFP-JEJ6Q
¨ A crítica mais elaborada contra a teoria de Thiede: http://tyndalehouse.com/tynbul/library/TynBull_1995_46_2_04_Head_GagalenPapyrusMat.pdf