Isaltino Gomes Coelho Filho
A primeira vez que ouvi alguém dizer que a África era um continente amaldiçoado foi pela boca de um irmão, que já está na glória. Como era uma pessoa dada ao exotismo bíblico, que sempre via o que nunca alguém vira, e muito problemática, logo rejeitei a ideia. Além de estapafúrdia, a declaração vinha de uma pessoa que eu, embora tivesse apenas 15 anos, sabia não merecer crédito.
A “base bíblica” foi a maldição sobre Caim (Gn 4.11ss). Vez por outra, pessoas ignorantes da Bíblia e que a usam de maneira atomizada, sacando passagens do contexto, e ignorantes da obra de Cristo, presas e apaixonadas às maldições veterotestamentárias, ressuscitam a ideia esdrúxula. É impressionante o que a ignorância, aliada à empáfia, faz! Para alguns intérpretes (foi o caso deste irmão que me deu sua interpretação) o sinal posto sobre Caim foi a cor negra. Por isso, a África e os negros eram amaldiçoados, e foram deportados como escravos. Já ouvi gente dizer que a terra de Node, onde Caim foi habitar, era a África. Tolice da grossa, pois a região nunca foi identificada. E o termo hebraico, nod, tem a ideia de andar sem rumo, e não de deportação. A maldição sobre Caim foi que ele, um agricultor, homem de vínculos com a terra, seria nômade. E também a associação dos cainitas (descendentes de Caim) com os quenitas, amaldiçoados com deportação escrava (Nm 24.21-24) é tremendamente incerta. É uma violência exegética, o que se chama de eisegese (pôr ideia no texto).
Além de não se poder afirmar que Caim foi para a África, tal ideia ignora que o sinal (´˜oth, algo externo), foi para proteção e não para maldição. Quem o encontrasse não deveria matá-lo (Gn 4.15). O termo reaparece em Gênesis 9.12: ´˜oth berith (“sinal da aliança”). E em Gênesis 17.11: lê ´˜oth berith (“para sinal da aliança”) Nestes dois casos, a palavra traduzida como “sinal” se associa com bênção. Obviamente que é o mesmo sentido com o episódio de Caim. Foi um sinal benigno, não maligno. O sinal posto foi lê Qain, literalmente “para Caim”, e não “contra Caim”. Foi algo para lhe favorecer. A maldição sobre Caim foi a de ser errante, e o trato posterior de Yahweh com ele foi de misericórdia, e não de ódio eterno. A tradição judaica diz que o sinal posto sobre Caim foi o nome sagrado de YHWH, para que todos soubessem que não deviam tocá-lo. Yahweh foi fiador de Caim. Isso se chama Graça e não maldição!
E há mais: as raças não surgiram após o Éden, mas após o dilúvio (Gn 10). E a dispersão da humanidade pela face da terra se deu em Gênesis 11 (especialmente v. 9). Caim nada teria a ver com a África nem com a Europa nem mesmo com a Oceania.
Há gente fissurada em maldições e no Antigo Testamento e suas pragas. Respeitosamente recordo-lhes o conteúdo do Sermão do Monte: “foi dito” e “eu, porém, vos digo” e sua admirável conclusão: “Estas minhas palavras”. O padrão é o ensino de Jesus, o Novo Testamento. Lembrem-se da palavra do Pai, na Transfiguração: “Este é o meu Filho amado, em quem me agrado; a ele ouvi” (Mt 17.5). Nós não ouvimos a Moisés e Elias (o Antigo Testamento), mas ao Filho amado (Hb 1.1-2).
Uma regra elementar de Hermenêutica ensina que o Novo Testamento interpreta o Antigo Testamento. Inclusive, segundo Paulo, o judeu só entende completamente o Antigo Testamento quando aceita o Novo (2Co 3.14-16). Seria bom parar de colocar o mundo e a igreja de Jesus sob o jugo do Antigo Testamento.
Fujamos de gente exótica que vê na Bíblia o que intérpretes bem mais capacitados e de mais autoridade espiritual nunca viram. Os reinventores do evangelho e da Teologia geralmente nos envergonham e escandalizam.
E no que interessa: não há nenhuma maldição especial sobre a África e sobre os negros. Racistas de plantão: não deturpem a Bíblia nem envergonhem os evangélicos!